Esperança surge no horizonte com os anúncios de vacinas, o único caminho efetivo para que a humanidade consiga controlar a pandemia. É revolucionário que tenham sido desenvolvidas em tão curto prazo. Me pergunto por que o mesmo não aconteceu com doenças que tendem a continuar nos devastando após superarmos a Covid-19.
Existe uma diferença enorme que é o contágio avassalador do SARS Cov-2, de pessoas para pessoas. Em dengue, zika, chikungunya, e malária só o mosquito Aedes Aegypti infecta e ele não habita todos os países, então a necessidade de vacina existe só para uns. Na AIDS, que existe em praticamente todos países, o contágio também é entre humanos mas sem a facilidade e velocidade de contágio do Cov-2, o que torna menos urgente uma vacina.
A esperança ainda está no horizonte, vacinas passarão por mais testes, entre faixas etárias e étnicas, e talvez só estejam ao alcance da população no próximo ano. Até lá seguiremos nos defendendo com o que temos: prevenção. Quem não conseguir se prevenir terá que ser forte para suportar as drogas disponíveis e mesmo a tensa rotina atual dos hospitais.
Continuamos também sem “vacina” para outras calamidades como as enchentes e os terremotos crônicos em outros países, só para citar dois exemplos. Para quem tem onde morar ou ao menos se abrigar, continuam urgentes os cuidados em relação à Covid-19, apesar das restrições e transtornos que acarretam.
O livro “O Amor em Tempos do Cólera” de Gabriel García Márquez fala sobre o comportamento humano durante confinamento: forçadas a adotarem hábitos mais rigorosos de higiene e economia, as pessoas acabam aprendendo práticas saudáveis que deveriam sempre utilizar, com ou sem quarentena.
É curioso que algumas pessoas nunca tenham cozinhado, ou sequer lavado louça e roupas, ou varrido chão, por terem terceirizado tais tarefas. Isso configura um mercado de trabalho que está sendo duramente atingido.
Algumas famílias podem se dar ao luxo de ter empregadas(os) habitando a mesma residência, sob proteção contra contágio no contato exterior. Não é toda família que tem essa opção, por não dispor de acomodações para mais uma pessoa ou pelo fato de esta ter sua própria família a atender. Claro que, acima disso, não é toda família que pode pagar por trabalho doméstico. Entre as que podem, não é justo expor alguém aos atuais riscos de contágio inerentes a transporte, filas, e proximidade com outras pessoas em áreas públicas. No prédio onde moro, o condomínio paga a diarista para que não venha trabalhar e fique protegida em casa. Nem todos condomínios podem sustentar uma situação assim, mas é indesculpável que os que podem não o façam.
A maioria das famílias nos EUA não contrata trabalho doméstico diário, mesmo tendo maior poder aquisitivo do que as brasileiras. Pesam dois fatores, pelo menos: em parte, os norte-americanos aprenderam culturalmente a dar conta de tarefas domésticas, ajudados por suas melhores condições de consumo. Pesa também a remuneração, trabalho doméstico custa mais caro nos EUA. Muitos brasileiros e brasileiras, alguns até com formação superior, vivem lá de fazer trabalho doméstico.
O confinamento nos impõe um necessário senso de economia, diante da incerteza sobre a continuidade do fornecimento de alimentos e produtos de higiene e remédios: é imperioso evitar-se o desperdício. Quantidades de sabão, detergente, água sanitária, etc precisam ser medidas, para que tenham rendimento otimizado e durem mais.
Procura-se também preparar quantidades mais precisas de comida para o que será efetivamente consumido, valorizando-se o que sobrou na panela em vez de imediatamente jogar fora. Aprendi em casa essa lição, quando minha mãe cozinhava uma panela de aipim (mandioca/macaxeira) para almoço e o que sobrava ela fritava na janta. Esse produto aliás é uma excelente alternativa para quem não tem prática de cozinhar: o preparo de tapioca fresca (goma) é vendido em feiras e mercados e seu preparo é questão de poucos minutos, quando sabemos que cozinhar geralmente consome tempo, especialmente no preparo dos alimentos.
No plano maior da sociedade, a palavra economia significa bem mais do que “economizar”, envolve todo o complexo sistema de interação entre produção, serviços e relações financeiras que fazem parte do que chamamos de “mercado”. A pandemia atual jogou sobre a sociedade um enorme desafio, coerente com o ditado popular “se ficar o bicho come, se correr o bicho pega”: é a constatação de que para melhor atender a saúde contra a pandemia a economia sofre drasticamente, e vice-versa. É o grande dilema que poder público e iniciativa privada precisam resolver, será que conseguem?
Atribui-se aos chineses antigos o significado de “crise” como sendo “perigo e oportunidade”, com o que o livro de G.G. Márquez tem coerência. Acredito que muitos estejam tirando lições valiosas dessa pandemia, e é triste que não sejam todos.
Publicado no jornal O Progresso – Montenegro RS em 24/07/2020
Por: Augusto Licks
Jornalista e músico. Como jornalista, foi editor de rádio e TV em Porto Alegre, colunista de O Estado de São Paulo Online, e atualmente colabora com o jornal O Progresso de sua cidade natal, Montenegro/RS. Como músico foi o guitarrista da fase de sucesso dos Engenheiros do Hawaii, manteve uma importante parceria com o cantor e compositor Nei Lisboa, é autor de trilhas para cinema e teatro, além produtor musical. Apresentou-se em centenas de shows no Brasil, incluindo eventos como Rock In Rio e Hollywood Rock, e em países, como Rússia, Japão e Estados Unidos.
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