As “mídias sociais” pela internet e a pandemia são dois fatores que dão forma ao mundo de hoje ou, mais exatamente, como ele é entendido. Isso não elimina fatores mais antigos como economia, educação, segurança, cultura, etc, mas a “cara” do mundo de hoje passa por estas duas situações mais recentes. Uma impõe um choque de realidade factual, enquanto a outra submete fatos a narrativas e leituras divergentes.
No contexto atual, fatos não falam tanto por si quanto a “guerra” de versões sobre eles. É um dos sintomas da chamada “pós-verdade” da qual já falamos, exacerbado pela disseminação de informações inverídicas nas quais muita gente acaba acreditando. É lastimável e trágico que os fatos de uma catástrofe como a pandemia não falem por si. Por causa disso, muitas pessoas já morreram e muitas outras mais irão morrer, simples assim.
Critica-se que a pandemia tenha sido “politizada”. Discordo da imprecisão vocabular com que esse termo é utilizado pois política é do interesse dos cidadãos e cidadãs, portanto é natural e coerente que a condução de questões públicas ocorra por critérios das autoridades que foram escolhidas pela população. O problema, mais exatamente, é a “eleitoralização” da pandemia, é ela ser usada para fins de convencimento que não têm necessariamente compromisso com verdade. Contra isso, ou não temos suficientes instrumentos de legislação e fiscalização para coibir, ou não há vontade político-administrativa, ou tudo isso.
Assisti atentamente à coletiva de imprensa do diretor da ANVISA na última terça-feira, aferindo cada critério protocolar por ele mencionado e referendado pelos dois assessores concursados presentes. Os três empenharam-se num esforço defensivo para justificar o cancelamento dos testes da vacina da Sinovac no Instituto Butantã, e ocuparam bastante tempo com isso quando poderiam ter sido bem mais objetivos já que tratava-se do cumprimento de protocolos. Ficou a sensação de que alguém “comeu bola”, fosse na própria ANVISA, ou no Instituto Butantã, ou no comitê independente no qual a agência se apoiou para suspender os testes.
Chegou a ser patético o desencontro de informações quando já havia boletim de ocorrência da polícia de São Paulo informando que a morte de um voluntário ocorrera por suicídio ou overdose de drogas. Para benefício de dúvida, até poderia se conjeturar que suicídio possa acontecer em meio a efeitos psicológicos colaterais de algum produto farmacêutico, o que também inclui vacinas (para se ter ideia, é só pegar uma lupa de aumento e ler as letrinhas minúsculas das bulas de alguns remédios). Isso, porém, já esbarraria na hipótese de que o voluntário tivesse recebido placebo em vez da vacina.
Seria tudo muito simples de resolver: bastaria que todos mostrassem as suas cartas na mesa, para saber-se o que exatamente foi informado e por quem, mas isso não aconteceu, e a agência não se empenhou para aferir com clareza as informações “incompletas” que recebeu. Ah, caiu a internet, diretor ? Ora, então pegue o telefone e ligue para o diretor do Butantã, como qualquer executivo competente faria na defesa dos interesses da instituição que dirige, no caso a vigilância da saúde pública nacional.
Já na terça-feira a ANVISA foi intimada pelo STF a prestar esclarecimentos e não teria como nem por que se negar, sendo um órgão técnico. A resposta não demorou, e ao final da manhã de quarta-feira a agência anunciou a suspensão da suspensão, autorizando a continuidade dos testes da vacina da Sinovac, admitindo não existir justificativa para sua interrupção. Ficará por isso ? Não deveria.
Certo é que alguém “pisou na bola”, e restaria investigar quem foi e por quais motivos. A paralisação injustificada dos trabalhos do Instituto Butantã configurou inegável dano ao interesse público, permitindo até que se possa questionar a permanência de seu executivo-chefe no cargo. Em ambientes corporativos, exceto talvez quando trata-se do dono, é comum que CEOs sejam demitidos se praticarem atos que vão contra os interesses da empresa.
Aí vem o contexto. Seria o diretor da ANVISA uma “cabeça” arriscável de ser sacrificada do ponto de vista ideológico do governo federal, ou aventar isso seria apenas teoria de conspiração ?
Fato é que tudo isso acontece às vésperas das eleições municipais, que já são campo de batalha visando às presidenciais em 22. A vacina da Sinovac desenvolvida em colaboração com o Butantã é um importante trunfo eleitoral do governador de São Paulo pois ela vinha apresentando resultados muito promissores. Não foi surpresa que a suspensão dos testes tenha sido comemorada pelo reelegível Presidente da República (e haja vice Mourão para apagar tantos incêndos que saem da boca de Jair Bolsonaro). A decisão federal carregava o efeito de jogar uma mancha de inconfiabilidade na iniciativa de João Dória.
O interesse público foi restaurado com a decisão da ANVISA em voltar atrás e autorizar a continuidade do esforço Sinovac-Butantã, mas algum dano eleitoral já foi perpetrado contra o presidenciável paulista, pois a essa altura milhares de pessoas já foram convencidas por redes sociais de que a vacina “chinesa” não é confiável.
Publicado no jornal O Progresso – Montenegro RS
Por: Augusto Licks
Jornalista e músico. Como jornalista, foi editor de rádio e TV em Porto Alegre, colunista de O Estado de São Paulo Online, e atualmente colabora com o jornal O Progresso de sua cidade natal, Montenegro/RS. Como músico foi o guitarrista da fase de sucesso dos Engenheiros do Hawaii, manteve uma importante parceria com o cantor e compositor Nei Lisboa, é autor de trilhas para cinema e teatro, além produtor musical. Apresentou-se em centenas de shows no Brasil, incluindo eventos como Rock In Rio e Hollywood Rock, e em países, como Rússia, Japão e Estados Unidos.
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