Num artigo anterior, prometi que iria abordar esse assunto. É um tema complexo, objeto de estudo acadêmico em linguística e campos relacionados como a semiótica. O próprio termo “linguagem” já possui mais de uma definição, que pode ser específica ou um conceito geral. Numa simplificação prática, diria que se trata de um conjunto de ferramentas a possibilitar que seres vivos se comuniquem e se informem. Diz-se, onde existe comunicação ou informação, existe linguagem.
Há uma variedade de tipos: falada, escrita, gestual, audio-visual, artística, etc. As linguagens são constituídas por códigos, e podem derivar dando origem ao que eu chamaria de sublinguagens. Corro o risco aqui de não empregar com precisão termos técnicos dessa área.
Na linguagem falada e escrita, o principal código é a palavra. Em situações sociais diferenciadas por gíria e regionalismo, os códigos mudam, incorporando significados adicionais. No entanto, palavras e suas derivações não são os únicos códigos da linguagem falada e escrita. Existem códigos menos evidentes porém até mais importantes do que palavras em certas situações: volume de voz, tom de voz, ênfase, etc. São componentes que enviam mensagens complementares àquelas mensagens construídas por palavras. Como resultado, às vezes o que se diz pesa menos do que como se diz.
É um campo de estudo vasto e fascinante. Quando entendemos um pouco o funcionamento, é inevitável a sensação de descoberta e de identificação pessoal com situações envolvidas. É o que levou a linguista norte-americana Deborah Tannen a escrever dois livros que rapidamente tornaram-se best-sellers, descrevendo situações cotidianas ilustrando que palavras são apenas parte da comunicação falada/escrita. Os títulos já são sugestivos: “That’s Not What I Meant” (Não É O Que Eu Quis Dizer), e “You Just Don’t Understand” (Você Simplesmente Não Entende). São leituras altamente recomendáveis, esclarecedoras e até divertidas.
No primeiro dos dois volumes, Tannen chega a emitir uma tese ousada, de que é praticamente impossível alguém falar alguma coisa que seja 100 por cento exata/verdadeira. A explicação para isso é de que muitos fatores circunstanciais e códigos subliminares constantemente interferem, fazendo com que uma afirmação feita por uma pessoa não seja exatamente o que outra pessoa irá entender. Sempre ou quase sempre haverá algum “tempero” a alterar o significado daquilo que se deseja expressar por palavras.
Traduções são um exemplo de interferência na exatidão de enunciados falados ou escritos. Nesse caso específico, pesa o fato de que idiomas não são exatamente equivalentes entre si e sim línguas (sistemas de linguagem) que expressam culturas respectivas de populações diferentes. A necessidade de transferir-se conhecimentos de uma cultura para outra faz com que usemos o recurso de tradução, para buscar em uma cultura um significado equivalente a um significado presente em outra cultura. Nem sempre uma palavra ou expressão traduzida é exatamente equivalente à de outro idioma. Considero isso uma riqueza, a demonstrar a diversidade cultural, do contrário daria aquela incômoda sensação de ser tudo igual. Calcula-se que existam entre 3 mil e 6 mil línguas no mundo, entre idiomas oficiais e dialetos, e no passado esse número foi ainda maior.
Em épocas escolares, ouvi certa vez alguém comentar que “saudade” era uma exclusividade da língua portuguesa, me fez sentir orgulhoso de nosso idioma. Na verdade, não é exatamente assim. Outras culturas também expressam aquele mesmo sentimento universal, só que de formas diferentes. A língua portuguesa gerou um substantivo, enquanto outras línguas usam verbo: “to miss” em Inglês, “extrañar” em Castellano/Espanhol. Pessoalmente, acho que o substantivo carrega alguma vantagem poética.
No segundo volume de seus best-sellers, Deborah Tannen dedica-se a observar as formas de linguagem específicas numa relação de casal e utiliza exemplos pitorescos. Em um deles, marido e mulher num automóvel retornam de uma saída (teatro, cinema, ou visita). Durante o trajeto, a mulher pergunta se ele gostaria de parar para beberem alguma coisa, ele responde que não. Faz-se silêncio, e quando chegam em casa o homem puxa conversa naturalmente mas a mulher continua em silêncio, nada responde.
Inquieto, ele pergunta o que estaria havendo, e ela explica que: ao perguntar se ele gostaria de parar para beber alguma coisa, ela estava tendo consideração por ele, e ele não teve a mesma consideração por ela, pois não lhe devolveu a pergunta “e você, gostaria de parar para beber alguma coisa?”
Duas possibilidades de desfecho, no mínimo: numa delas, o homem dá-se conta da sublinguagem da mulher e reconhece que ela tinha razão em se sentir desapontada. Em outra possibilidade, o homem se irrita pensando algo como “se ela queria parar para beber alguma coisa, porque não falou logo, bolas ?” Nesse caso, ele continuaria simplesmente não entendendo.
Publicado no jornal O Progresso – Montenegro RS
Por: Augusto Licks
Jornalista e músico. Como jornalista, foi editor de rádio e TV em Porto Alegre, colunista de O Estado de São Paulo Online, e atualmente colabora com o jornal O Progresso de sua cidade natal, Montenegro/RS. Como músico foi o guitarrista da fase de sucesso dos Engenheiros do Hawaii, manteve uma importante parceria com o cantor e compositor Nei Lisboa, é autor de trilhas para cinema e teatro, além produtor musical. Apresentou-se em centenas de shows no Brasil, incluindo eventos como Rock In Rio e Hollywood Rock, e em países, como Rússia, Japão e Estados Unidos.
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