Recentemente acompanhei um caso de internet, em que alguém teve sua conta de rede social invadida por terceiros tentando usá-la para aplicar golpes. O problema foi resolvido junto à rede com a reconfiguração de senha e de dados de segurança. Com essa reconfiguração, restaurou-se a condição de ser tecnicamente impossível a duplicidade de acesso, ou seja, só a pessoa titular da conta pode acessá-la.
Me ponho a pensar se alguma segurança técnica assim não poderia também ser futuramente aplicada ao conceito de verdade. Será que teria como funcionar? Ou será que a desejada solução poderia acabar se tornando problema?
A verdade é amparada em fatos e sinceridade, mas na realidade prática ela é constantemente lida e distorcida, descrita por versões, maquiagens semânticas, confusão, fake news, e mentiras.
Tudo isso se contrapõe como obstáculo ao melhor entendimento das coisas que acontecem, formando a matéria-prima do que se convencionou chamar de “pós-verdade”. Esse termo ganhou muita notoriedade nos últimos anos ao ser associado com estratégias de propaganda política na campanha das eleições norte-americanas de 2016 e no Brexit, processo pelo qual a Grã-Bretanha se dissociou da Comunidade Europeia.
Post-truth recebeu distinção no dicionário de Oxford como a “palavra do ano”, significando ou sendo relacionada com: “circunstâncias em que fatos objetivos são menos influentes na formação da opinião pública do que apelos à emoção e à crença pessoal”. Qualquer semelhança com a política eleitoral brasileira não é mera coincidência.
O termo é moderno, porém o tema não é exatamente novo, remonta a contextos e debates dos últimos dois séculos. Em 1873 Friedrich Nietzsche já questionava a possibilidade de que a verdade possa ser universal. Para ele, o ser humano inevitavelmente atua como uma espécie de filtro, alterando ou mesmo substituindo a verdade universal por conceitos de valor. Em 1917 Max Weber formulou uma distinção, entre fatos e valores, os primeiros sendo determinados por métodos da ciência, os segundos ficando restritos a noções culturais e religiosas.
A distinção de Weber foi combatida por Leo Strauss, para quem a verdade deveria ser sempre avaliada segundo padrões éticos. Já Michel Foucault, Jacques Derrida, e Bruno Latour sustentam que fatos científicos são produzidos socialmente através de relações de poder. Para Latour, fato científico não carrega necessariamente uma verdade inerente em si, é mais exatamente um produto do estudo científico.
Hanna Arendt inspirou-se no relatório do Pentágono norte-americano sobre a guerra do Vietnã para escrever seu artigo Lying in Politics (mentindo na política), no qual criou o termo defactualization (desfatualização), ou seja impossibilitar discernimento entre o que é fato e o que é ficção. Trata-se de ingrediente fundamental da prática política. Esta, ela divide em duas partes: criar imagens, e fazer as pessoas acreditarem em tais imagens.
Fato é … que mentira rola solta. Indaguei a um policial se alguém poderia ser criminalmente responsabilizado por ter enviado mensagem falsa dizendo, por exemplo, que basta consumir determinados alimentos para não contrair a Covid-19 (recebi mensagem exatamente assim !). Me explicou que não, mesmo que a pessoa que recebeu a mensagem viesse a morrer por seguir a orientação, pois o direito penal não consegue abarcar a disseminação de informações falsas entre indivíduos.
Ele me chamou atenção, porém, de que a questão das fake news é muito complexa e que a ideia de regulamentá-la e de se instituir monitoramento na internet carrega consigo o risco de possibilitar práticas de poder contra a liberdade de expressão dos cidadãos, com consequências imprevisíveis.
O policial acredita que no futuro isso será menos problemático, por uma questão de psicologia geracional: hoje seriam mais vulneráveis a golpes as pessoas de gerações que se habituaram a ser informadas por meios de comunicação certificados como jornal, revista, rádio e TV, e intuem alguma expectativa de que o que recebem de redes sociais possa ter a mesma garantia de veracidade. Já os mais jovens estariam mais “vacinados” e melhor habituados a lidar com o problema.
Mesmo antes de haver redes sociais, mentira já era criminalmente tipificável apenas quando proferida durante interrogatório jurídico, caracterizada aí como perjúrio, ou então se caracterizasse injúria, calúnia, difamação ou outra forma de dano moral e à imagem de quem se sentisse atingido.
Fora disso, há campo livre e amplo para mentir-se publicamente, seja afirmativamente ou por omissão de verdade: nos EUA, o presidente Trump continua mentindo descaradamente ao repetir que a Covid-19 não é motivo para tanta preocupação quando a cada dia que passa mais 70 mil norte-americanos se infectam. Nosso presidente Bolsonaro não fica atrás com sua “gripezinha” e com algumas inverdades que falou na abertura da assembleia-geral da ONU. Algumas autoridades, não todas, mentem para se justificar. Alguns candidatos a se elegerem como autoridades, não todos, mentem para convencer eleitores. Alguns artistas, não todos, mentem talvez para gerar polêmica à cata de audiência e visibilidade. Técnicos e dirigentes de futebol, não todos, volta e meia mentem, dizendo uma coisa e fazendo outra. Mesmo entre amigos e familiares rola aquela mentirinha “social”, esta ao menos com a boa intenção de não magoar pessoas.
Aí nos perguntamos “-Mas, em quem acreditar?” Rigorosamente falando, suponho que em ninguém. Melhor do que acreditar é saber, é procurar se informar do que acontece e não ficar acreditando no que dizem que acontece. É difícil, eu sei, tem muito entulho obstruindo um caminho assim, mas podemos ao menos tentar, fazer um pequeno esforço que seja. Acreditar? Deixemos isso para o exercício de religiosidade e espiritualidade de cada um, e para pessoas próximas e de nossa confiança, assumindo algum risco calculado.
Publicado no jornal O Progresso – Montenegro RS
Por: Augusto Licks
Jornalista e músico. Como jornalista, foi editor de rádio e TV em Porto Alegre, colunista de O Estado de São Paulo Online, e atualmente colabora com o jornal O Progresso de sua cidade natal, Montenegro/RS. Como músico foi o guitarrista da fase de sucesso dos Engenheiros do Hawaii, manteve uma importante parceria com o cantor e compositor Nei Lisboa, é autor de trilhas para cinema e teatro, além produtor musical. Apresentou-se em centenas de shows no Brasil, incluindo eventos como Rock In Rio e Hollywood Rock, e em países, como Rússia, Japão e Estados Unidos.
Foto: Divulgação