O ideal e o real — Augusto Licks

Aproxima-se novembro, tradicional mês de eleições no Brasil e nos Estados Unidos. Lá a votação é antes, no dia 3, e mais impactante. O que os norte-americanos decidirem em relação a seu presidente não determinará apenas o futuro próximo de seu país. Irá também gerar ressonâncias no resto do mundo inclusive por aqui, tamanho o protagonismo dos EUA na geopolítica mundial, mesmo que muitos de seus cidadãos e cidadãs não tenham noção disso.

Lembro de como, quando jovem, o simples ato de votar causava euforia, especialmente em 1989 na primeira eleição presidencial direta depois do regime militar.

No Brasil, neste novembro teremos eleições municipais. Podem não ter o mesmo impacto ou “glamour” de uma eleição presidencial, mas a seu favor carregam a particularidade de oferecer, em maior ou menor grau, alguma proximidade entre eleitores e candidatos. Entram em questão aspectos locais, em tese mais fáceis de serem entendidos e geralmente de interesse mais imediato.

Chamou-me atenção certa vez o comentário de um político de significativa biografia ideológica, a revelar auto-crítica ou ao menos alguma revisão de conceitos. Disse ele que a política deveria ser direcionada às questões próximas, da vizinhança mesmo, distanciando-se de grandes projetos ideológicos globais.

Ideologias não são necessariamente uma coisa ruim, podem ser a organização de ideais, e nesse caso algo genuíno. Claro que ideais diferentes podem gerar ideologias diferentes e mesmo conflitantes. É natural que pessoas tenham visões de mundo diferentes. Exigir que pensem de uma mesma forma seria artificial, é coisa que só ditaduras tentam impor.

O problema de ideologias me parece semelhante ao de religiões: a prática institucional, a sua dificuldade em corresponder fielmente a conceitos teóricos. Há interpretações divergentes, e corrupção acontece, como parece acontecer em qualquer ambiente corporativo em que não há total transparência de informação.

A política é a prática institucional de conceitos ideológicos, assumidos ou não, quando a estes se impõem os desafios de administração pública. Alguns candidatos fazem campanha dizendo não terem ideologia, dizendo não serem “políticos”, não fazerem parte “desses políticos que estão aí”. É uma tática mentirosa, usando duplicidade de sentido, para convencer pessoas ingênuas.

A expressão pejorativa “esses políticos” é uma distorção. Sugere que políticos são apenas espertalhões que se aproveitam de cargos públicos em benefício próprio. E quem a usa procura isentar-se de culpa, jogando-a para eles, “os políticos”. Essa incompreensão, disseminada pelo senso comum, esconde os fatos.

Mais correto seria referir-se a “esses nós”. Políticos somos todos nós, seja por nos engajar nos tratos públicos, seja por nos omitir em relação a eles. Políticos podem até tirar proveito próprio dos cargos (e a lei existe para ser usada nesses casos), mas foram eleitos para representar interesses de setores da sociedade, que podem ser empresariais, sindicais, culturais, educacionais, ou mesmo religiosos. Você, leitor ou leitora, provavelmente tem interesses de alguma forma afetados por um desses setores. Além disso, candidatos eleitos, naturalmente trabalharão a favor dos interesses dos setores que apoiaram suas campanhas.

Já comentamos que muitas pessoas não sabem porque votam, apenas o fazem porque a lei obriga. Acabam convencidas por um ou outro método de propaganda de gente que sabe.

Existem também os que acreditam cegamente em suas escolhas, e não querem mais saber, acham-se certos e ponto final. Finalmente, existem pessoas que ainda conseguem enxergar, em meio a todas formas e linguagens de convencimento, algum conteúdo concreto que realmente lhes faça sentido.

É comum ouvir-se de formadores de opinião frases cliché tipo “-Vote consciente, eleitor”, ou “Eleitor, escolha bem seu candidato”, para “não errar desta vez”. Aí cabe perguntar: como votar consciente? como escolher bem um candidato? Fala sério.

O “frisson” de uma campanha eleitoral acirra emoções, faz candidatos crescerem para respectivos simpatizantes, gera expectativas exageradas, é irreal. O real serão as ações que serão praticadas depois, no exercício do poder. No calor da proximidade eleitoral, o que acaba acontecendo é a esperança de vitória de quem tivermos escolhido, como decisão de um campeonato esportivo. E essa esperança de ter-se alguma boa notícia nos povoa de idealizações: de que se vencer quem escolhemos tudo funcionará maravilhosamente, não haverá corrupção, e nossos problemas serão resolvidos. Passada a eleição, começa então a fase real, em que os eleitos exercem seus cargos administrando suas funções públicas. Aí, o que acontece: nos afastamos da política, contentando-nos em confiar em que os eleitos cumprirão promessas e que usarão honestamente o dinheiro público.

Por que ocorre esse afastamento? Ora, por falta de educação sobre como funciona o sistema político, já que isso não é ensinado na maioria das escolas. Em consequência, a maioria não tem qualquer ideia do que se poderia fazer para mudar o sistema, para torná-lo melhor. Assim então, a maioria da população é induzida a se omitir. Alguns, não entendendo o que acontece, ainda às vezes têm a pachorra de reclamar “desses políticos”.

Recentemente, uma das mais populares cantoras brasileiras comentou que pretendia estudar política, pois não gostava de emitir opinião sem saber do que estava falando. A artista tocou em uma ferida. Muita gente fala de política sem saber do que está falando, apenas repetindo ladainhas ouvidas a la maria-vai-com-as-outras.

A causa da má qualidade da política que temos não são candidatos mal escolhidos, eles são consequência. A causa é nosso sistema político-eleitoral, cujas regras dão margem aos problemas que acontecem e, entra governo e sai governo, nunca são aperfeiçoadas. Para agravar isso, política é sempre coisa impregnada de preconceito e tabu.

Uma das grandes falhas é a força desproporcional que exerce a propaganda sobre o conteúdo de propostas, e especialmente a importância que se dedica ao apelo pessoal de candidatos. Em nosso sistema eleitoral reina o culto à personalidade, e não deveria.

Não se deveria reclamar de quem faz política e sim da política que alguém faz. O que importa é o “que” é feito, e não “quem” faz. Em algum futuro, talvez as pessoas votem em propostas em vez de candidatos, e talvez tenham a opção de cassar mandatos de quem não cumprir proposta prometida, automaticamente, por aplicativo até. Seria uma política mais próxima da ideal. Por enquanto, infelizmente, temos que nos contentar com a política real, e torcer para que ao menos essa não nos seja tirada.

Publicado no jornal O Progresso – Montenegro RS

Por: Augusto Licks
Jornalista e músico. Como jornalista, foi editor de rádio e TV em Porto Alegre, colunista de O Estado de São Paulo Online, e atualmente colabora com o jornal O Progresso de sua cidade natal, Montenegro/RS. Como músico foi o guitarrista da fase de sucesso dos Engenheiros do Hawaii, manteve uma importante parceria com o cantor e compositor Nei Lisboa, é autor de trilhas para cinema e teatro, além produtor musical. Apresentou-se em centenas de shows no Brasil, incluindo eventos como Rock In Rio e Hollywood Rock, e em países, como Rússia, Japão e Estados Unidos.

Foto: Divulgação

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