Paladar — Augusto Licks

Palavras recentes do Papa Francisco confirmam o que há muito tempo já se entendia como bom senso mas que não tinha uma validação formalmente expressa na Igreja Católica, de que o prazer pela comida não é motivo de culpa. Segundo o Pontífice, carrega até um aspecto divino.

Procuro não enxergar a realidade por culpabilidades e sim por causas e consequências. É inegável, porém, que na experiência humana constroem-se sentimentos de culpa e em alguns casos são relacionados com alimentação. Por exemplo, a falta de comida para alguns e excesso para outros, a gula, o sobrepeso, a fome. No entanto, a satisfação proporcionada pelo ato em si de saborear uma determinada comida sempre me pareceu legítimo, inatacável. Claro que, como em tudo, cabe algum discernimento.

“A Festa de Babette” sempre foi um filme favorito de todos os tempos, pois mostra como a comida pode melhorar o humor das pessoas e assim torná-las mais afáveis e mais dispostas a entenderem-se entre si. Demonstra que a comida é também um código, pelo qual pessoas expressam cortesia e carinho.

Como questionar o esforço e até sacrifício de mães e avós a proporcionar através da cozinha a oportunidade de algum sorriso nos rostos dos familiares? Ainda mais quando têm a grandeza de produzir e oferecer cardápios que nem são de sua própria preferência ou gosto pessoal. Pontua bem a canção de Cláudio Levitan: “Como dói ser mamãe …”. Há nobreza e grandeza nessas mulheres e, na ausência delas, também em homens que aceitam assumir missão correspondente.

Ao longo da vida, vão mudando as circunstâncias de alimentação. Se na infância havia o conforto materno desde o aleitamento até a comida caseira, o caminho adolescente é muitas vezes um trilho de incerteza e insegurança rumo à maturidade, e isso passa por algumas provações também na área alimentar. Rejeita-se alguma coisa, enjoa-se de outra, sente-se falta de ainda alguma outra coisa.

Lembro que certa época, ainda criança no número 1518 da rua Ramiro Barcelos, “empaquei” diante de um prato de arroz e feijão: não tinha jeito, não queria comer e pronto. Dona Irma precisou de muita paciência e habilidade para lidar com aquele caçula. Se minha memória não falha, ela conseguiu resolver o problema com criatividade. Pegou uma folha de alface que plantava na horta e, depois de lavá-la bem, mostrou-me como ela podia ser moldada, formando uma espécie de trouxinha recheada. Pude perceber que a cobertura fria da hortaliça contrastava bem com o calor do recheio.

Qual era o recheio ? Ora, arroz e feijão, claro. Passei eu mesmo a colocar em prática aquela técnica. Eventualmente, mesmo na falta de alguma alface, readquiri o gosto por arroz e feijão, e não vivi mais sem essa tradicional combinação. Quando passei a me distanciar de casa, em viagens pelo país e depois para ir estudar em Porto Alegre, tive sorte de que arroz e feijão era uma opção universal em refeitórios, nunca faltava, exceto em algumas situações de dificuldade e carência pelas quais às vezes se passava.

Por muitos anos, por conta das rotinas estudantil e profissional, me alimentei “na rua”. Cozinhar em casa era uma situação especial, a ser ocasionalmente compartilhada com amigos. Quando se é jovem, em casa ou em restaurante, comida boa é muito apreciada e sem muita moderação, “sem medo de ser feliz”. Com o passar do tempo, a saúde começa a emitir sinais e começamos a entender algumas coisas alimentares que talvez quiséssemos ter sabido mais cedo.

Dá-se então mais atenção a propriedades e efeitos de diferentes alimentos e à própria combinação entre os mesmos. Sinto falta atualmente de uma divulgação maior de estudos mais aprofundados sobre combinação alimentar. Já ouvi aqui e ali uma resposta fácil de que “temos enzimas para tudo”, que considero genérica e insatisfatória, pois minha experiência pessoal me demonstrou na prática que o organismo não responde da mesma forma a alimentos diferentes. Seria bom que a área médica de nutrologia se tornasse mais valorizada, mais protagonista, e mais popular.

Em determinada época encontrei estudos empíricos antigos, que estabeleciam distinção entre três famílias de alimentos: ácidos, neutros, e alcalinos. Os primeiros e os terceiros, por serem administrados diferentemente pelo organismo, não deveriam ser consumidos juntos, na suposição lógica de que assim nenhum nem outro teria a mesma eficiência digestiva. Numa época de intensa atividade profissional, fiz a experiência de não misturar alimentos ácidos e alcalinos na mesma refeição, tipo: proteínas no almoço, carboidratos no jantar. Enquanto foi uma opção prática sustentável, a sensação era de nada a reclamar, pelo contrário.

Foi tornando-se nítido para mim que alimentação com algum regramento trazia benefícios à saúde e fortalecia ânimo e força de vontade na rotina. Ficou óbvio que determinadas comidas muito saborosas, se consumidas com muita frequência, não produziam aquele mesmo benefício, poderiam até fazer mal à saúde. Além disso, a sensação de sabor era prejudicada. Lembro de passar um mês consumindo iguarias gastronômicas num hotel de São Paulo, por ocasião de gravações em estúdio local. Os primeiros dias podiam ter proporcionado prazer, mas na sequência aqueles pratos especiais foram se tornando rotina, e assim perdendo encanto.

A partir dali, em viagens passei a consumir alimentos básicos e seguros, como sopas e canjas, reservando comidas sofisticadas para ocasiões especiais. Estabeleceu-se para mim uma noção de que existem alimentos para a saúde diária do corpo, e alimentos ocasionais, para o que defini como saúde “da alma”. Neste segundo caso, até alguma “junk food” poderia proporcionar sabor sem prejudicar a saúde, desde que fosse do gosto pessoal e não frequente. Me anima saber que ainda existe em Porto Alegre o “Zé do Passaporte”, há mais de 60 anos um dos primeiros “cachorros-quentes” da cidade, se não o primeiro.

Certa vez falei disso a meu irmão Rogério, que além de músico sempre foi um estudioso em diferentes áreas de conhecimento, incluindo saúde e alimentação. Ele comentou que a minha abordagem carregava algum aspecto religioso, o que na época me deixou intrigado. Tempos depois, por eventos que se sucederam, entendi um pouco melhor a sabedoria de meu irmão, que distinguia entre alimentação saudável/terapêutica e comida “de paladar”, não saudável. É uma noção próxima daquilo que eu intuia.

Observei também na minha experiência pessoal que, ao adotarmos regras alimentares, alguns pratos muito saborosos gradativamente deixam de ser irresistíveis e podemos até mesmo deixar de apreciá-los. É que, mudando a alimentação, passamos a não querer mais alguns tipos de comida, e passamos a gostar de outros. O paladar muda, e não é culpa de ninguém.

Publicado no jornal O Progresso – Montenegro RS

Por: Augusto Licks
Jornalista e músico. Como jornalista, foi editor de rádio e TV em Porto Alegre, colunista de O Estado de São Paulo Online, e atualmente colabora com o jornal O Progresso de sua cidade natal, Montenegro/RS. Como músico foi o guitarrista da fase de sucesso dos Engenheiros do Hawaii, manteve uma importante parceria com o cantor e compositor Nei Lisboa, é autor de trilhas para cinema e teatro, além produtor musical. Apresentou-se em centenas de shows no Brasil, incluindo eventos como Rock In Rio e Hollywood Rock, e em países, como Rússia, Japão e Estados Unidos.

Foto: Divulgação

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