Decisão ou Tapetão — Augusto Licks

Lembro de clichês de cobertura esportiva, quando às vésperas de um grande clássico de futebol como o Gre-Nal, proclamava-se : “-Reina grande expectativa !”. Pois a eleição dos Estados Unidos se grenalizou, expondo, ao menos no jogo eleitoral, uma aparente polarização entre os que defendem o atual presidente Trump e uma oposição que reuniu não apenas o adversário democrata Biden mas também algumas dissidências no próprio partido republicano, bem como importantes setores da sociedade civil como a comunidade científica, e boa parte dos meios de comunicação.

Escrevo aqui sem conhecer ainda o resultado das eleições presidenciais norte-americanas. A votação histórica da última terça-feira projetou um cenário de muito equilíbrio na tradução da votação popular para votos indiretos, e também sombras de incerteza com declarações de Donald Trump. Na votação popular, Trump mais uma vez se viu diante de derrota, mas com chance de ser novamente socorrido pelo anacrônico e antidemocrático sistema do colégio eleitoral.

Por que o assunto, e o que temos a ver com isso, aqui no Brasil ? Ora, porque embora aconteça no exterior, pode trazer consequências para nosso país e para o resto do mundo. A direção que os EUA seguirem a partir de agora certamente produzirá ressonâncias para o futuro político, econômico, e diplomático do Brasil e do mundo.

Trump reeleito seria a continuidade de um modelo a reforçar, por exemplo, as convicções de nosso atual governo federal, a possivelmente alavancar a reeleição do presidente Bolsonaro em 22. Alimentaria também a preocupação de um endurecimento diplomático norte-americano com riscos até de um confronto bélico com a China.

Uma vitória de Biden seria recebida internacionalmente como tranquilizadora. Aqui no Brasil certamente jogaria uma referência de incerteza em motivações eleitorais locais, e provavelmente iria impor alguns reajustes nas nossas relações diplomáticas.

Trata-se de uma eleição muito diferente de todas anteriores, em que a nação mais rica do planeta precisou decidir se quer ou não seguir com uma política que desafia estruturas tradicionais da ciência e da democracia. É uma eleição que veio testar a solidez institucional da política dos EUA, até pelas ameaças de intimidação anunciadas por seu atual mandatário.

Claro que “nação” não é um indivíduo nem mesmo um conjunto homogêneo de indivíduos. O presidente para esse próximo mandato de quatro anos está sendo escolhido por diferença muito pequena de votos, o que alguns identificam como “polarização”, com o que pessoalmente não concordo. Existe diversidade nas motivações de eleitores e eleitoras, e a decisão que tomam não é necessariamente racional ou fundamentada. Para muitos norte-americanos, a sensação é de que a vida não mudará seja quem for eleito, tamanha a zona de conforto da qual muitos usufruem com o “American Way of Life”. Para outros muitos fará sim diferença, e alguns se farão ouvir publicamente como já aconteceu neste mesmo ano em episódios de natureza racial, mas isso é parte do contexto complexo do país e suas reconhecidas contradições.

Feita minha ressalva sobre não-polarização, é fato que impôs-se à parte consciente da população norte-americana decidir se acredita que Trump reeleito será capaz de combater a pandemia com eficiência que ainda não demonstrou, e se será capaz de pacificar o país diante de um eventual acirramento de questões raciais e sociais, e se terá capacidade de efetivamente administrar a crise econômica.

Quem entender o significado dessas dúvidas, certamente definiu voto em função disso. Restará saber ao final da contagem qual terá sido a significância quantitativa dos eleitores que não entendem essas coisas, vulneráveis que são a convencimentos não-racionais. Restará também saber o quanto da legitimidade dos votos sobreviverá diante de eventuais recontagens e anulação de urnas (como aconteceu na Florida no ano 2000 por alegação de “muita demora”), além de eventuais manobras de Trump.

Águas ainda vão rolar na ressaca da votação de terça-feira, mas é possível tecer algumas considerações. O “jogo” em si da eleição pareceu confirmar a tese de que não basta um candidato ser boa pessoa, mais do que isso é preciso que a pessoa seja um bom candidato. Conversando com norte-americanos dias antes do pleito, uma frase ficou marcada: “as mentiras de Trump conseguem convencer mais do que as verdades de Biden”. Parodiando o dito shakespeariano, convencer ou não convencer, parece ser a questão.

Mesmo que a contagem final de votos venha a favorecer Biden levando-o à Casa Branca, a impressão é de que Trump foi bem mais eficiente na mobilização de eleitores, considerando que tinha muita coisa contra si: o natural desgaste de um primeiro mandato, somado às suas posturas questionáveis sobre a pandemia, a questão ambiental, a questão racial, e a relação com a China, a proporcionar incertezas entre a população. Tudo isso poderia ter sido melhor aproveitado eleitoralmente por Biden, que tentou, mas não conseguiu fazer suficientemente, esbarrando nos limites do próprio perfil não-carismárico de sua candidatura.

Biden é centrista, e seu “não-radicalismo” foi importante parte da estratégia eleitoral dos democratas, pois estes temiam que uma candidatura de Bernie Sanders pudesse “assustar” eleitores, à semelhança do que aconteceu com George McGovern, facilmente derrotado por Richard Nixon em 1968. A moderação seria um canal de acesso a eleitores que votaram em Trump em 2016 e agora estariam insatisfeitos. Isso parece ter funcionado.

De novo, porém, a forma pesa muito. O “nice guy” Biden não entusiasmou como candidato, não passou convicção, e não foi suficientemente pontual e incisivo na diferenciação de sua candidatura. Por sua vez, Trump é um show diário na mídia, e continuará sendo mesmo que perca a eleição, periga se proclamar “vencedor moral”. Não nos esquecendo de suas constantes alusões a uma eventual “virada de mesa”.

Publicado no jornal O Progresso – Montenegro RS

Por: Augusto Licks
Jornalista e músico. Como jornalista, foi editor de rádio e TV em Porto Alegre, colunista de O Estado de São Paulo Online, e atualmente colabora com o jornal O Progresso de sua cidade natal, Montenegro/RS. Como músico foi o guitarrista da fase de sucesso dos Engenheiros do Hawaii, manteve uma importante parceria com o cantor e compositor Nei Lisboa, é autor de trilhas para cinema e teatro, além produtor musical. Apresentou-se em centenas de shows no Brasil, incluindo eventos como Rock In Rio e Hollywood Rock, e em países, como Rússia, Japão e Estados Unidos.

Foto: Divulgação

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