Dinâmicas e Zumbis

Acabou mais uma eleição, a competição que mobiliza milhões de brasileiros na única forma de participarem do processo político: a escolha de quem fará o que não podem ou não querem fazer. Vitoriosos comemoram, derrotados lamentam, analistas interpretam os resultados e já fazem projeções para o próximo pleito daqui a dois anos.

Em janeiro começará a parte principal da política, da qual não participam esses milhões de brasileiros: o exercício do poder pelos eleitos. São as decisões sobre a vida pública, em como utilizar dinheiro dos impostos e como atacar as urgências da sociedade.

É hora de esquecer acusações de campanha e diferenças ideológicas, e de arregaçar mangas para trabalhar construtivamente. De preferência, que executivos governem mais do que tentem se manter no poder, ainda que seja algo difícil de se esperar. É também hora de as instituições de governo dialogarem.

“Política é dinâmica”, comentou certa vez Leonel Brizola, ex-governador dos estados do RS e RJ. Em 89, liderava inicialmente as pesquisas mas foi gradativanente caindo diante de Lula e da “novidade” Fernando Collor, o “caçador de marajás”. Na campanha, Brizola batia forte nos adversários. Paulo Maluff era o “filhote da ditadura”. Ao perder para Lula a ida ao 2o turno, comentou que teria que engolir um “sapo barbudo” para combater Collor.

No Rio, implantou-se o projeto de educação integrada de Darcy Ribeiro, em que alunos(as) estudam, alimentam-se, e realizam atividades extracurriculares sempre dentro das instalações escolares. É o que vivi nos Estados Unidos, e funcionava muito bem. Os CIEPs foram contestados por opositores políticos que não dedicariam tamanha prioridade à educação. Ainda assim, ouvia-se gente rica comentar “não gosto do Brizola, mas não dá para criticar os CIEPs”.

Quando Collor foi eleito, propôs a criação de CIACs, num conceito parente porém com abrangência nacional. Como mágica, desfez-se toda aquela animosidade da campanha eleitoral, presidente e governador começaram a conversar. Era uma causa comum, e o diálogo não era mais entre candidatos, mas entre instituições de governo. Encontrou-se ali discernimento.

“Ah, mas o Collor era corrupto, teve roubalheira”, é um comentário comum, previsível. Sim, houve corrupção no governo de Collor e foi denunciada pelo próprio irmão, aparentemente como ato de vingança pessoal. É só pesquisar, e os detalhes podem ser revisitados, Collor acabou renunciando. Agora, procure saber se foi ou não condenado pelas acusações que lhe foram imputadas.

No domingo do segundo turno, tive uma sensação cinematográfica. Seguia rumo à seção eleitoral, em meio a congestionamento de carros e muitos pedestres. Poderia supor que fosse movimento eleitoral, mas não.

O movimento era em direção a praias, mureta, e demais pontos tradicionais de aglomeração popular. Muitos pedestres circulavam sem máscara, daí a sensação de algum filme de catástrofe ou terror. No desviar de uns e de outros, um cidadão alterado aproximou-se bradando sons, brincando de assustar. Parecia cena de “zumbis”, e tive que espantar o dito cujo com um xingão. Me passou pela cabeça a hipótese de que os sem-máscara talvez tivessem a mesma sensação, inversa, talvez para eles fôssemos nós os “zumbis”.

São tempos difíceis, especialmente em metrópoles populosas. A explosão de contágio dos últimos dias é consequência das aglomerações que aconteceram lá atrás, há quase um mês. Com a chegada do calor de verão a partir do último fim-de-semana, já podemos projetar nova explosão de contágio para daqui a outro mês, e aí já será período de festas de fim-de-ano, férias, calor inevitável, e consequentemente mais aglomerações, mais contágio.

Ficamos a nos deparar com uma realidade que pode ser ainda mais assustadora do que já é. Muita gente mais vai morrer, muitos vão sofrer em unidades de tratamento intensivo em hospitais, muitos talvez nem consigam ser atendidos. Alarmismo? Não, matemática. As vacinas, sabemos, serão o remédio para esse grande mal, mas não acontecerão tão rápido como esse verão que sinistramente se aproxima.

Para as autoridades, segue o dilema: o que fazer com a população que não segue regras de proteção, aparentemente por não ser capaz de entender explicações racionais? Nem saberiam entender a noção de homicídio culposo, que já se atribui a esse comportamento errado que vitima pessoas vulneráveis.

O mais eficaz seria multar, atingir o bolso desses ignorantes, mas quem terá coragem de tentar isso junto a uma enorme massa de “descrentes”, e como fiscalizar? Sem falar nos prováveis desacatos do tipo “-Você sabe com quem está falando?”.

Está aí minha maior expectativa em relação aos novos governantes municipais: como irão administrar tamanha encrenca já no início de seus mandatos. Terão a competência que alardearam durante a campanha eleitoral? Conseguirão diálogo com o governo federal para um plano unificado de combate à pandemia? Saberão lidar com os “zumbis”, ou será que nós é que ficaremos relegados a alguma condição de quase “mortos-vivos”?

Publicado no jornal O Progresso – Montenegro RS

Por: Augusto Licks
Jornalista e músico. Como jornalista, foi editor de rádio e TV em Porto Alegre, colunista de O Estado de São Paulo Online, e atualmente colabora com o jornal O Progresso de sua cidade natal, Montenegro/RS. Como músico foi o guitarrista da fase de sucesso dos Engenheiros do Hawaii, manteve uma importante parceria com o cantor e compositor Nei Lisboa, é autor de trilhas para cinema e teatro, além produtor musical. Apresentou-se em centenas de shows no Brasil, incluindo eventos como Rock In Rio e Hollywood Rock, e em países, como Rússia, Japão e Estados Unidos.

Foto: Divulgação

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