Limites da Lei — Augusto Licks

No dia 3 de novembro, menos de duas semanas antes das eleições municipais brasileiras, os norte-americanos votarão para eleger seu presidente. Este será referendado só no dia 14, quando delegados eleitorais nomeados pelos partidos honrarão sua promessa de votar desproporcionalmente, em favor de quem obtiver maioria no voto popular, desprezando-se todos os votos minoritários. É o sistema de eleição indireta que vigora nos EUA, através do chamado “colégio eleitoral”, exclusivo para a escolha de seu chefe de estado.

Muito já se discutiu sobre esse sistema, especialmente sua vulnerabilidade de permitir que um presidente seja eleito sem receber a maioria dos votos da população, o que já aconteceu cinco vezes, incluindo na mais recente, em que Donald Trump se elegeu com quase três milhões de votos a menos do que a adversária Hillary Clinton, garantindo-se por somar no colégio eleitoral os votos de 304 delegados, contra 227.

O sistema segue recebendo críticas, mas será difícil mudá-lo, acostumados que estão os partidos Republicano e Democrata. Excepcionalmente em 1977, o presidente Jimmy Carter chegou a propor emenda constitucional para instituir o voto presidencial direto mas o assunto foi praticamente ignorado no congresso.

Como alternativa prática, alguns governos estaduais recentemente têm se alinhado ao “National Popular Vote Interstate Compact”, um acordo interestadual que explora uma inespecificidade do artigo 2 da constituição dos EUA, facultando a estados definirem métodos eleitorais. Pelo acordo, comprometem-se por legislação local a destinar todos seus votos do colégio eleitoral à maioria verificada na votação popular. Até agora porém, só 15 estados aderiram ao acordo, correspondendo a 196 votos do colégio eleitoral, sendo que para o acordo ganhar força legal seriam necessários 270 votos do total de 538.

Enquanto essas coisas não mudam, os estrategistas eleitorais seguem então tratando de explorar a vulnerabilidade eleitoral em favor de seus respectivos candidatos. Somam a isso, claro, todas as técnicas publicitárias e propagandistas que conseguem usar buscando convencer eleitores.

Uma peça tradicional nas campanhas eleitorais norte-americanas é o debate televisivo entre os candidatos, inaugurado no histórico encontro Kennedy-Nixon em 1960, que teve grande influência a favor de Kennedy. Já daquela vez, a imagem mostrou sua força em relação a palavras, e o próprio Nixon reconheceu ter sido negligente (recuperava-se de uma hospitalização e mesmo assim não quis utilizar maquiagem, que é de praxe em TV). Ali já ganhava sustentação a tese de que telespectadores indecisos se focam mais no que vêem do que no que ouvem.

Será que o recente primeiro debate entre Donald Trump e Joe Biden terá grande influência para um ou outro ? Pelo que vi terça-feira, pode até ser mas não tanto pelo debate em si.

Debates de TV passaram a ter importância relativizada com o passar dos tempos. As discussões pontuais e as razões contrapostas foram perdendo cada vez mais sua força para aspectos subliminares como imagem, a serem posteriormente manipulados. A atividade passou basicamente a fornecer matéria-prima para edições de vídeo e áudio. Nestas, detalhes são pinçados para utilização ampliada nos espaços e horários de propaganda, geralmente para atacar a imagem de adversários. Tanto que alguns candidatos nem comparecem a debate, temendo sofrer desgaste inesperado nas pesquisas. Com as redes sociais então, tudo isso se exacerbou, a ponto de desafiar a capacidade operacional da justiça em conter crimes de calúnia, difamação e dano moral.

Talvez do debate da última terça-feira seja explorada a frase “-Dá para calar a boca ?” pronunciada por Biden em uma das 73 vezes em que foi interrompido por Trump, mas pouco além disso. Nem mesmo a explosiva revelação da imprensa norte-americana de que o atual presidente teria sonegado impostos ganhou destaque. Achincalhação pessoal foi a tônica do debate, restando saber quem conseguirá tirar  proveito disso. Próximos capítulos talvez tenham mais a oferecer, afinal este foi só o primeiro de três debates entre os dois candidatos.

Até porque, na medida em que se aproxima a data da eleição, tendem a ter mais peso fatores de última hora, que os respectivos estrategistas procuram explorar ao máximo para enfraquecer a imagem pública do adversário nos últimos momentos antes de eleitores decidirem seu voto. É óbvio que essa briga se dá principalmente nos campos de batalha modernos, as redes sociais, que funcionam como poderosas lupas de aumento manipulativas para detalhes pinçados tanto de debates como fora deles.

Biden naturalmente irá carregar na denunciada sonegação de impostos de Trump, mas será que isso já não será “notícia velha” após a curva que o presidente já deu (disse ser mais esperto do que outros em otimizar obrigações tributárias)? Aqui Biden revelou certa fraqueza, típica de bom-mocismo democrata, perdendo  oportunidade de ser mais contundente diante de uma questão concreta, e assim passar mais convicção nas coisas que diz.

Por sua vez, em Trump sobra convicção, mesmo que faltando à verdade. Ele não apenas surfa no limite legal de afirmações públicas duvidosas como desafia a própria lei, ao ameaçar não aceitar uma eventual derrota, colocando sob suspeição de fraude a utilização de votos por correio. Ele sabe que muitos eleitores democratas, aparentemente mais do que eleitores republicanos, evitarão comparecer a urnas presenciais temendo a Covid-19 e pelo voto não ser obrigatório nos EUA.

Trump chegou a sugerir que Biden seja testado sobre uso de drogas. É uma hábil insinuação, que carrega consigo o poder explosivo de passar à opinião pública a ideia de que o adversário é usuário de drogas ilegais. Esse tipo de afirmação produz um estrago que sua não-veracidade geralmente não tem forças para remediar. Às vezes mais do que acusação, tem a força de uma sentença. Provavelmente a tática dará resultado em alguma parcela de eleitores indecisos. Crime de dano moral, difamação, aparentemente sim, mas e daí ? Do que adiantará um processo judicial diante do que está em jogo na eleição presidencial do país mais rico do planeta?

Isso nos leva a pensar e questionar, por exemplo, o que é mais importante: justiça ou ganho político? Aqui no Brasil sabemos de alguns casos em que políticos tiveram seus direitos cassados por decisão de outros políticos, com base em acusações nas quais a justiça depois os acabou absolvendo. Sim, a lei tem limites práticos, de abrangência e de eficácia.

Publicado no jornal O Progresso – Montenegro RS

Por: Augusto Licks
Jornalista e músico. Como jornalista, foi editor de rádio e TV em Porto Alegre, colunista de O Estado de São Paulo Online, e atualmente colabora com o jornal O Progresso de sua cidade natal, Montenegro/RS. Como músico foi o guitarrista da fase de sucesso dos Engenheiros do Hawaii, manteve uma importante parceria com o cantor e compositor Nei Lisboa, é autor de trilhas para cinema e teatro, além produtor musical. Apresentou-se em centenas de shows no Brasil, incluindo eventos como Rock In Rio e Hollywood Rock, e em países, como Rússia, Japão e Estados Unidos.

Foto: Divulgação

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